quarta-feira, março 22, 2006

Humildes de coração


Por uma dessas ironias do destino, a diretoria da mega-igreja foi convidada para a inauguração da creche comunitária localizada num dos bairros mais carentes do município.
A iniciativa, bem-intencionada, partiu de um membro da igreja, um vereador - meio populista diga-se de passagem - bem atuante naquela paupérrima comunidade, que vislumbrou uma ótima oportunidade de aumentar seu prestígio naquele reduto.
Afinal, a diretoria da mega-igreja prestigiando a inauguração de uma creche comunitária era um acontecimento!
O convite foi levado ao pastor Premium com toda a pompa e circunstância pelo vereador e seu assessor, mas eles não esperavam a recepção glacial que tiveram.
“Inauguração de creche comunitária? Qual o nome do bairro mesmo?”, tentou barrar a secretária bilíngüe ainda na recepção.
“É importante que ele vá, a comunidade tem um grande apreço pelo pastor Premium”, insistiu o irmão-vereador.
“Vou verificar a agenda dele e retorno para o irmão”, disse ela sorridente, encerrando a questão.
O convite foi recebido com um sorriso irônico pelo pastor Premium e seu assessor direto, pastor Platinum.
“Inauguração de creche comunitária num bairro afastado? Ruas de barro, com poças d’agua?”, perguntou.
“Se fizer sol, poeira na cara, não esqueça!”, acrescentou o pastor Platinum, rindo.
“Diga para ele que eu tenho uma reunião importante nesse dia, uma viagem, sei lá, dê um jeito”, diz ele, repassando o problema para a secretária.
Ao sair, ela ainda pôde ouvir o comentário final do pastor Premium: “Eu hein, quanto mais eu rezo mais assombração me aparece!”.
O que ele não esperava é que, habilmente, o vereador, talvez pressentindo a recusa, sondara a liderança da hiper-igreja, a tradicional rival e que estava buscando – como devo dizer – seu espaço junto a comunidade evangélica.
Assim que a informação chegou ao pastor Premium ele quase infartou.
“Secretária, ligue para o irmão-vereador e chame-o aqui, AGORA!”.
“Mas o senhor não mandou dispensá-lo? Eu já o avisei de que naquele dia é impossível”, respondeu ela.
“Pois você está despedida, sua incompetente! Para Deus não existe impossível! Ele transforma o impossível no possível! Chame-o agora e depois passe no RH!”, grunhiu ele.
O irmão-vereador veio assim que recebeu a notícia, embora não tenha entendido o ar choroso da secretária nem tampouco reconheceu a nova secretária na recepção da diretoria.
“Amado irmão-vereador, o irmão não sabe como fiquei consternado por esse terrível equívoco. Imagine que aquela incompetente havia confundido minhas orientações e não priorizou o seu convite”, inicia o pastor Premium.
“Aonde já se viu? Eu cansava de falar para ela que qualquer convite envolvendo apoio para nossas comunidades carentes tem total prioridadel”.
O irmão-vereador, sentindo-se valorizado, retribui: “O senhor não faz idéia de sua populariedade naquela comunidade, pastor Premium. Será ótimo tê-lo ali conosco”.
“Então, até lá!”, despede-o o pastor Premium.
Nos dias seguintes o pastor Premium, visivelmente preocupado, envolveu-se em reuniões com alguns de seus assessores mais diretos buscando uma espécie de “consultoria” sobre as classes menos favorecidas.
“Será que pega mal seu aparecer por lá com o BMW X5?”, pergunta ele.
“Nem pensar, vá de carona com o irmão-vereador”, responde um.
“E a roupa, uso aquele terno Armani ou o Hugo Boss que comprei em Roma?”.
“Use uma calça jeans e camiseta branca ou uma camisa social discreta, sem jóias ou relógios caros”, aconselha outro, “Também evite perfumes caros”.
O pastor Premium se exaspera.
“Ei, daqui há pouco você vai sugerir para eu usar tênis”.
O olhar dos assessores o convence de que eles iam orientar exatamente isso.
“Ok, ok. E se alguma daquelas pessoas mise..., digo humildes me convidar a entrar na casa deles, meu Deus, o que eu faço?”.
“Fique tranqüilo, estamos tentando nos antever a qualquer situação inesperada”.
E ficaram assim combinados.
Na tentativa de compartilhar o sofrimento, na noite anterior à inauguração o pastor Premium havia tentando convencer sua esposa a acompanhá-lo.

Afinal, seria ótimo para a imagem da igreja a presença não só do pastor, mas também do casal líder da mega-igreja.
Para seu desalento, sua esposa ouviu os detalhes do convite, a localização da creche e foi definitiva: “Perdeu o juízo? Me inclua fora dessa!”.
Ele ainda balbuciou alguns argumentos mas ela virou-se para o lado e dormiu.

Ele ainda tentou convidar sua filha, mas ela fechou e trancou a porta do quarto quando ele começou a narrar os detalhes.
O dia da visita amanheceu chovendo, continuou chovendo e na hora marcada estava caindo um verdadeiro dilúvio.
O pastor Premium se assustou quando a secretária o avisou da chegada do irmão-vereador e seu assessor, para levá-lo ao bairro afastado.
“Mas como, com essa chuva? Vai ter inauguração assim mesmo?”, tentou ele.
“Claro pastor Premium. E o que é uma chuvinha para o senhor? O povo já está lá esperando-o”, falava o irmão-vereador enquanto o conduzia para o carro.
O chefe da segurança do pastor Premium teve que ser convencido, depois de muita discussão, que não haveria risco em usar o veículo de vereador, abrindo mão de sua pickup blindada.
Ele só concordou porque sua escolta de três veículos abarrotados de seguranças – dizem que dois deles seriam ex-integrantes do serviço secreto isralense - iria acompanhá-los.
Devido a chuvarada, o bairro carente havia se transformado literalmente num mar de lama. Menos mal que as instalações da creche eram logo na subida do morro, poupando-os de escalarem uma ladeira íngreme e escorregadia.
Entraram na creche e a visão impactou o pastor Premium.
Centenas de pessoas humildes, muitos idosos, muitas crianças pequeninas, algumas descalças, outras sem roupa, enfim, o cotidiano dos bairros pobres.
O irmão-vereador falou algumas palavras, saudou a comunidade, apresentou o pastor Premium e pediu para ele trazer uma palavra ao povo.
Este estava distraído, olhando o estrago que o barro tinha feito no tênis Nike caríssimo que havia comprado.
Um dos pastores Platinum o cutucou e ele, meio a contragosto, começou a caminhar para a frente do palanque.
Assim que deu o primeiro passo, contudo, sentiu que algum livro estava sendo passado para ele.

O pastor Platinum, discretamente, colocou uma Bíblia em suas mãos.

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